O toque
Ele
saiu do ventre de sua mãe e ao contrário das outras crianças, que choravam ao
seu redor, não enxergou as cores, as formas, a vida. Gemeu baixinho, encolheu o
pequenino corpo e debateu-se na escuridão até sentir-se envolto por dois braços
acolhedores. D. Esmeralda o colocou para dormir e guardou para si as
preocupações e convicções que só o ser mãe é capaz de ter.
Passou
sua infância na fazenda do avô convivendo com coloridíssimas borboletas,
alegres pássaros e verdes pastagens que ele sabia que existiam, mas que seus
olhos não eram capazes de enxergar. Passava a maior parte do tempo sozinho e
recluso em seu mundo escuro. As outras crianças não o incluíam em suas
brincadeiras, ao não ser na “cabra-cega”, na qual ele era sempre a cabra.
Todavia, Cecílio não se chateava por não
brincar com as outras crianças. O que ele adorava mesmo era sair sozinho e
entrar na mata, esbarrar nas árvores, sentir o cheiro da vida, ouvir cantos de
seres desconhecidos por sua visão. O que ele gostava mesmo era de se sentir
livre. Liberto dos cuidados excessivos de todos que o rodeavam. Liberdade, ele
só procurava isso. Desenvolveu-se em meio a essa liberdade.
O
tempo seguiu seu curso indesviável e Cecílio tornou-se adolescente. Mudou de
fisionomia e de endereço. Agora, mora com a mãe no Bairro das Flores Alegres.
Ainda continua recluso, ainda mais eu diria. Não tem amigos e seu único
passatempo é ir à pracinha para tentar sentir a liberdade que ele sentia na
fazenda. Contudo, o máximo que consegue é uma suave brisa com um leve frescor
perfumado de rosas tocando sua face. Por mais que tente cheirar a liberdade,
aqui ele não corre, não esbarra nas árvores, não ouve cantos de seres
desconhecidos.
Mas
sentindo ou não o cheiro da liberdade, toda manhã ele está na pracinha. E foi
em uma dessas manhãs que ele conheceu Cristina. O sol flutuava amarelo no céu
azulado. As rosas desabrochavam lentamente e as flores observavam atentas
aquele espetáculo. Algumas crianças brincavam no parquinho.
Cecílio
sentou-se no banco como de costume, cruzou as pernas e ficou balançando a
bengala desorientadamente. Alguns pombos o sobrevoaram na esperança de ganharem
migalhas do pão que ele levava a boca.
Ele continuou a morder fortemente o pão quando percebeu que não estava
sozinho naquele banco. Acomodou-se como quem marca território, mas não fez mais
que isso. Alguns minutos depois, o vento soprou e algo como longos cabelos bateram
em seu rosto. Nesse momento ele percebeu que sua companhia de banco era uma
mulher. Ficou curioso para saber como ela era, mas guardou a curiosidade para
si.
Minutos
continuaram a passar e alguém resolveu quebrar aquele silêncio. Ela, sim, ela
resolveu perguntar:
–
Você vê o dia?
Ele
desconsertadamente perguntou:
–
Você está falando comigo?
–
Sim, estou perguntando a pessoa que eu sei que está nesse banco comigo.
–
Infelizmente eu não posso lhe dizer, pois sou cego. Não vejo o dia e nem a
noite.
–
Eu também sou cega. Lhe perguntei pensando que você não era cego, pois é um
costume que tenho. Em todos os locais que ando sempre pergunto a alguém como
está o dia para que esse alguém possa me dizer e eu possa imaginar o que é
real.
–
E isso é bom?
–
É sim! Me faz sentir presente no mundo. Não me sinto tão deslocada.
–
Gostei disso. Acho que vou começar a fazer.
–
Que tal irmos procurar alguém aqui na praça que possa nos dizer?
– Gostei da ideia.
Os
dois levantaram. Cada um com sua bengala. Dirigiram-se em busca de alguém. Até
que... pararam uma senhora e perguntaram uníssonos:
–
Você vê o dia?
A
senhora respondeu:
–
Sim!
Eles
completaram:
–
Nos diga como ele está.
Calmamente
a senhora descreveu como estava o cenário que os rodeava. Terminada a descrição
eles agradeceram à senhora e saíram. Cecílio sorria. Cristina perguntou:
–
E aí? Gostou da experiência?
–
Foi muito boa. Consegui imaginar como está o dia.
Cristina
bateu a bengala em uma pedra e perguntou:
–
Posso lhe contar um segredo?
Cecílio
respondeu:
–
Pode.
Ela
prosseguiu:
– Eu pergunto as pessoas, imagino e guardo todos os dias bons como o de hoje em meu cérebro para que quando alguém me disser que o dia está ruim eu imaginá-los.
– Eu pergunto as pessoas, imagino e guardo todos os dias bons como o de hoje em meu cérebro para que quando alguém me disser que o dia está ruim eu imaginá-los.
Ele
a questionou:
–
Mas isso não é um grande segredo.
Ela
acrescentou:
–
É o segredo de minha felicidade.
–
Então, já que funciona, a partir de hoje farei isso também. Olha, já estou
contando meu mais novo segredo para você.
Cristina
gargalhou e disse que tinha de ir. Ela já havia se afastado quando Cecílio
gritou:
– Ei, qual é seu nome?
–
Cristina! E o seu?
–
Cecílio!
Cecílio
não ouviu mais nada além disso. Cristina se perdeu na escuridão e ele voltou
para casa levando consigo o desejo de conhecê-la melhor. Ela havia despertado
nele algo novo, melhor que a liberdade. Era como se ele enxergasse com o
coração. Era uma sensação nova que ele não sabia o nome por nunca tê-la
sentido.
No
dia seguinte ele colocou seu perfume em demasia e esperançoso dirigiu-se à
pracinha. Sentou no mesmo banco e quando uma criança passou perto dele ele
disse:
–
Ei, você vê o dia?
A
criança um pouco assustada falou:
–
Vejo.
O
ceguinho continuou:
–
Pois me diga como está.
A
criança panoramicamente observou o ambiente e disparou:
–
O sol hoje não está tão vivo. As nuvens estão esbranquiçadas. A grama está
verdinha. As rosas... não têm tantas rosas. As flores estão alegres, mas
poucas. A pracinha está um pouco menos movimentada.
Ao
terminar a descrição a criança disse que precisava ir brincar e saiu correndo.
Cecílio
agradeceu, mas a criança não estava mais ali para ouvir seu “Obrigado!”.
O
ceguinho permaneceu sentado naquele banco esperando que alguém – Cristina – o
fizesse companhia. Porém, esperou em vão, pois as horas passaram e ninguém
apareceu. Saiu desapontado para casa.
No
dia seguinte fez o mesmo ritual do dia anterior e foi à pracinha. Chegando,
sentou no banquinho, mas com um semblante triste, pois já não estava tão
esperançoso com a ideia de Cristina aparecer.
De
repente, alguém sentou no banco. Seu sangue ferveu. Ele pedia confiante aos
céus que ventasse para saber se era uma mulher. Mas nem foi preciso dar
trabalho aos céus, pois uma voz idosa e cansada falou:
–
Bom dia, filho. Vou sentar um pouquinho aqui para descansar, essas minhas
compras estão muito pesadas.
Pigarreando
ele não deu muita atenção à senhora. Estava frustrado.
A
senhora saiu.
Demorou,
mas quando ele menos esperava outra pessoa sentou no banco e fez a pergunta que
mudou seu dia:
–
Você vê o dia?
Cecílio
profundamente feliz e desconsertado respondeu:
–
Não vejo, eu sou Cecílio.
–
Cecílio é você mesmo? Que bom! Sentamos juntos novamente.
–
Que bom!
Cristina
balançou a bengala e docemente perguntou:
–
Posso lhe fazer um pedido?
–
Pode sim!
–
Posso tocar em você para que eu saiba como você é?
Um
virou-se para o outro e Cristina começou. Suas mãos delicadas pousaram no rosto
de Cecílio. Ela tocou seus olhos, sua sobrancelha, desceu seu nariz e parou por
alguns segundos deslizando os dedos por seus lábios até que contornou sua face.
Foi descendo as mãos e percorreu os braços dele. Parou. Cecílio, que nunca
havia sido tocado daquela maneira, estava em êxtase. Seu sangue circulava
rapidamente e o corava. Seu coração palpitava e algo que ele nunca havia
sentido antes tomava conta de seu ser: o prazer. Essa nova sensação fazia-o
homem. Ele havia descoberto o mundo. Ele agora experimentara a verdadeira
liberdade. Agora sim sabia o que era isso. Ela o havia beijado com os dedos. Tudo
havia se modificado. O toque. As sensações. O toque. O sangue corria. O toque.
Seu corpo pegava fogo na escuridão. O toque. Seu corpo experimentava o prazer.
O toque. Descobrira a vida. O toque. Tornou-se um homem liberto.
Ele ficou paralisado
por alguns instantes para poder guardar aquele toque e o reconhecer em qualquer
parte do mundo. Guardou-o. Cristina fazia o mesmo.
–
Pronto! Já guardei suas feições! Disse Cristina.
Ele
ainda não falava.
Passou
alguns segundos e ela falou que tinha de ir embora porque já estava ficando
tarde. Despediu-se de Cecílio tocando seu ombro e sumiu na escuridão.
Cecílio
também resolveu ir para casa. Não tinha mais nada para fazer naquela praça.
Caminhou feliz e já se preparava para amanhã.
O
dia amanheceu. Ele se vestiu, se perfumou e foi à pracinha objetivando mais que
nunca encontrá-la. Queria a conhecer melhor, embora já conhecesse seu melhor
lado: seu toque.
Sentou-se
no banco e ficou esperando. Esperou até ficar somente ele na pracinha. Ela não
apareceu. Caminhou decepcionado para casa, mas com a esperança de amanhã ela
aparecer.
A
manhã chegou, ele fez todo seu ritual e novamente Cristina não apareceu. Ficou
mais triste ainda, mas sempre alimentando a esperança de vê-la no dia seguinte.
Vários dias seguintes se passaram e só o que aparecia era o toque dela em sua
mente. A esperança de vê-la diminuía progressivamente. Ele sofria. Em tão pouco
tempo, com poucos e pequenos encontros, Cristina havia se tornado a paixão de
sua vida. Ela o fazia se sentir vivo no mundo escuro. Ela era como ele. Ele
queria a conhecer melhor. Queria evoluir aquele toque. Queria beijá-la. Queria
amá-la.
Anos
se passaram, ele não frequentava mais a praça por conta de Cristina e vivia escuro
por dentro. Nada mais o fazia sorrir. Nunca mais perguntara a alguém se via o
dia. A solidão corroía seu âmago. A tristeza o cegava sentimentalmente enquanto
a cegueira o cegava corporalmente. Tudo era escuro. Não tinha mais vida. Viver
já não tinha mais graça. Não passava de um ser escurecido pelo destino. Mas um
dia algo aconteceu e deu um basta nisso tudo.
Era
quase finzinho de tarde. Cecílio tinha ido à farmácia comprar um comprimido. A
rua estava movimentada. A barulheira era grande. As pessoas esbarravam-se. As
sacolas de compras batiam em Cecílio. O espaço era pequeno para tanta gente.
Buzinas. Buzinas. Reclamações. Brigas. O trânsito estava um inferno.
Cecílio andava
devagar e estava um pouco desorientado com tanta movimentação. Sua bengalinha
ia a sua frente abrindo caminho. Ele seguia rumo à farmácia quando... quando
algo o paralisou. O fez perder a cabeça. Mudou seus sentidos, sua direção. Um
toque. De repente, alguém havia tocado seu ombro. Era o mesmo toque. Ele o
conhecia. Ele rodou, mas não havia ninguém. Chamou instintivamente por
Cristina, mas ninguém respondeu. Saiu desesperado para qualquer direção. Não
sabia mais para onde caminhava. Um baque. Carros buzinavam. Gente corria.
Gritos. Olhares espantados e curiosos. Alguém sangrava no chão. O cheiro de
vida se esvaindo era forte. O desespero tomava conta dos espectadores. Cecílio.
O toque. Ele havia sido atropelado quando saiu desorientado andando na faixa de
pedestre como semáforo verde. O sangue jorrava de sua boca. O
toque. Sua bengala encontrava-se quebrada ao seu lado. Seu corpo endurecia
vagarosamente. O toque. A vida deixava aquele corpo escuro. Cecílio morria. A
vida ia-se por conta de um toque. Morria perturbado com a possibilidade de
vê-la novamente. Vomitou o resto de sangue que ainda tinha em seu corpo e não
enxergou mais nada como sempre fez em toda a sua vida.
2 comentários:
Essa história é maravilhosa que pena que o final não foi exatamente como eu queria, mais apesar do final é uma história linda,Cecílio morreu, mais sua alma ficou livre para enxergar o caminho antes nunca visto na terra.Obrigado por mais essa história.
Obrigado, Edimara Freire!
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