quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Um natal não tão feliz


A cidade. Papelão. Sonhos. Sujeira. Desejo. Frio. Persistência. Rua. Fé. Fome. Esperança. Ânsia. O menino. A mãe. O cachorro. Tubarão.
Uma vida difícil. Véspera de natal. Falta comida. Barriga vazia. A mãe com fome há cinco dias. O menino alimentado com lixo e esperança. Esperança da visita de Papai Noel.
Noite. Escuridão. Frio. Fome. Um barulho. Um possível ho, ho, ho. O menino quase acorda. Mas volta a dormir. Alimenta o cérebro de esperança. Sonhos. Agonia. Gemidos. O grito. A mãe.
Dia. Sol. Natal. Renascimento. O menino com olhos limpos. A visão. Um corpo esticado. Um velho lençol vermelho o envolvendo. Não era Papai Noel. Sua mãe experimentava do sono eterno.
O fim. O cachorro. O corpo. O abraço. O pisca-pisca queimado. O menino. O medo. O coração queimado. O futuro também queimado.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Livre. Lua. Leve


Em um desses fins de tarde, “a boca da noite” como costumam chamar, nos quais o alaranjado do sol fervente dá lugar ao azul frio e escuro da noite eu sentava em minha calçada na cadeira mais traiçoeira de todas – acredite: quando ela quer ser má ela consegue. Outro dia minha tia subiu nela para limpar uma prateleira e adivinha o que aconteceu? Isso mesmo, a cadeira amoleceu as pernas, bombeou e quase derrubou ela. Mas a crônica de hoje não é sobre as maldades frias da cadeira vermelha. Longe disso! Isso pode ficar para a próxima. Ah, que fique logo bem claro: ela não tentou nada comigo! Gosto das coisas explicadas, principalmente para o caso de a cadeira estar, nesse momento, esmerilhando concentrada em minhas palavras.
Então, estava nesse cenário pitoresco quando olhei para o céu e além dos pontinhos cor de ouro que surgiam incontrolavelmente rápido a vi, a Lua. Redonda, grande e de um branco transparente acinzentado. Ela estava linda. Uma graça. Fechei e coloquei Clarice no colo para ficar apreciando a Lua. Nesse exato momento, o relógio marcou dezoito horas, o padre rezou a “Ave Maria”, a vizinha trouxe uma cadeira, juntou-se a mim na calçada e a minha tia chegou. Pronto! Foi só ela me achar admirando nosso satélite natural para começar a falar que eu estava apaixonado.
Ouvi aquilo e apenas sorri. Mas meu cérebro trabalhava: Quem inventou essa história de que só observa a Lua quem está apaixonado? Por isso, agora lhe pergunto o mesmo, caro leitor. Quero saber sua opinião sobre isso. Você acha que isto está certo? Olha, nem se esquiva que de mim você não escapa. Quero ouvi-lo! Mas para facilitar as coisas para você irei continuar escrevendo e vou contar o que penso disso.
É o seguinte: primeira lei da vivência humana: se Deus te deu um par de olhos, foi para olhar T. U. D. O! (Juro que não é propaganda de meu livro, mas se você ainda não leu, basta procurar a opção no menu para ser direcionado até ele) Olhar qualquer coisa a qualquer momento. Os olhos servem para apreciar as coisas que não podem ser tocadas por nenhuma outra parte de nosso corpo. Os olhos desejam, satisfazem-se, denunciam, observam, amam, comem... Sendo assim, eu, você, tu, ele, nós, vós, eles podemos observar o que quisermos, o que bem entendermos. Olhar tal coisa não significa tal coisa. Só você sabe o significado de seus olhares. Portanto, não venha com essa de que se olhar para a Lua, está apaixonado.
Dito isso, acrescento outra coisinha: por que a Lua tem de ser sinônimo de amor, romantismo, namoro? Só por que os casais resolvem se amar durante a noite e usam seus olhos para admirar esse astro não significa que ele seja símbolo do amor. A Lua é linda e independente! Quem pensa que ela morre de amores pelo Sol e sofre por não poder estar perto dele se engana. Ela vive é solteira curtindo a noite com suas inúmeras amigas douradas e pegando o maior número possível de meteoros. Ela só quer saber de iluminar, sorrir, espalhar luz e alegria. Amor? Amor não ilumina nada. Depois de um tempo de luz intensa a escuridão chega para todos. Por isso, a Lua quer saber de amar os momentos. Muda a cada fase. O tempo nunca está ruim para ela. Se está cheia de tudo, vira nova. Muda para o novo. Se está minguante, cresce que é uma beleza. Sofrimento não dura muito para ela. Portanto, quero aqui desconsertar esse pensamento, pois minha amiga Lua não sugere uma figura romântica abobada.
Pois é, quando alguém me vir olhando esse astro inigualável estarei apreciando sua beleza e a singularidade do momento. Para penar no amor leio meus amigos do Romantismo.
E você, concorda ou discorda? A que conclusão chegou? 

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

10 MIL VISUALIZAÇÕES: 10 fatos sobre mim


Oi! 10 mil acessos! Isso mesmo! Ainda não estou acreditando! Muito obrigado a cada um que acessou meu blog. Essa marca pode parecer insignificante e pequena para alguns, mas para mim é gigante, é a realização de um sonho. Muito obrigado a cada um que partilhou isso comigo. Muito obrigado mesmo! Sintam-se virtualmente abraçados por mim. Que Deus ilumine a todos e possibilite mais 10 mil acessos. Vamos comemorar! Gritar! Pular! Sorrir! #10K (Já vou aproveitar para divulgar a fanpage do blog para vocês curtirem e pedir para me seguirem aqui no Blogger e no Google +. rsrs)


E, para comemorar, trago a tag “10 fatos sobre mim”. Espero que gostem!

1 TENHO 18 ANOS

2 FAÇO ANIVERSÁRIO EM 17 DE JANEIRO

3 SOU CAPRICORNIANO

4 MINHA ESCRITORA FAVORITA É CLARICE LISPECTOR

5 SONHO EM SER UM ESCRITOR BEM-SUCEDIDO

6 JÁ CHOREI LENDO LIVROS

7 ODEIO PESSOAS QUE FINGEM SER O QUE NÃO SÃO

8 AMO CACHORROS

9 NÃO ME CONTROLE QUANDO ENTRO NA “ESTANTE VIRTUAL” E ACABO COMPRANDO EM DEMASIA

10 VIVO SONHANDO E PLANEJANDO O MEU FUTURO


E é só! Espero que tenham gostado. Grande beijo e até a próxima quarta. Ah, comentem o que acharam.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Sobre arriscar


A vida é feita de riscos. Não tenha medo deles. Arrisque. Não arriscar é não se permitir. É não se entregar. É não experimentar. É não viver. De que adianta um corpo, uma alma e uma vida, se não se está experimentando, sentindo, procurando viver? Coloque em sua mente que mesmo não fazendo nada, ficando apático a tudo, trancando-se em um mundo só seu, vivendo e convivendo somente consigo mesmo a vida dá um jeito de te mandar riscos. Você não está imune a eles. Eu não estou imune a eles. Então, se não podemos nos livrar do problema, fazemo-lo parecer menor, menos feroz e mais amigável. Atraente para ser enfrentado. Arrisque. Voe sem medo. Pule mesmo. Podem te achar louco? Claro! Hoje todo mundo acha alguma coisa, mas não se preocupe. Arrisque, ache sua felicidade e deixe pensarem que você encontrou a loucura.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Como foi seu dia? Como vai sua vida?


Hoje vim para conversarmos. Isso mesmo! Quero saber de você como anda a vida.
Como você está?
Você acordou disposto?
Comeu o suficiente?
Orou?
Agradeceu por ter acordado e visto o mundo a sua volta?
Conseguiu dar conta de todas as tarefas?
Fez com amor?
Sentiu prazer em realizá-las?
O dia voou ou pousou lentamente sob os ponteiros daquele lindo relógio que você tem?
Sentiu que estava acompanhado durante todo o dia?
Deleitou-se ou suportou mais um dia?
Aconteceu algo de bom?
E de ruim?
Foi bem na escola?
Na faculdade?
Mostrou esses pequenos seres humanos brancos e delicados que você ostenta na boca em algum momento?
Foi motivo do sorriso de alguém?
            Enfim, aproveitou essas horas preciosas de vida que Deus te ofereceu?
...
Você deve está pensando que enlouqueci, mas estou sano. Só quero interagir, saber do seu dia. Pode ter sido fácil, difícil, alegre, triste... Enfim, só sei que foi singular. Foi só seu. Então, gostaria que fizesse o seguinte: pegasse uma folhinha de papel, um lápis ou uma caneta e anotasse suas respostas para cada uma dessas perguntas acima. Ah, se você preferir, pode responder no celular ou deixar nos comentários aqui do blog. Depois, leia suas respostas, veja como foi seu dia. Se quiser me mandar, mande. Caso contrário, guarde só para você.
Por que eu estou fazendo isso? O que você vai ganhar com isso? Isso é só uma tentativa minha de te mostrar que me importo com você e que o melhor está nas pequenas coisas, que a gente vive em uma correria insana que não para para pensar no que aconteceu em nosso dia, que esquecemos dos sorrisos, das pessoas, das atitudes, das faces, dos olhares. Quero ser o alguém que vai perguntar como foi seu dia. Acredite, muita gente não tem alguém que pergunte como foi seu dia, como anda a vida, enfim,  que se importe. Isso faz muita diferença! Se não faz para você, sinto muito, mas creio que para algum ser deste mundo gigante e conturbado isso faz toda a diferença, e é para esse ser que escrevo, para mostrar que ele pode contar comigo, que eu me importo com ele, com a vida dele, com o dia dele.
Voltando às perguntas, gostaria de acrescentar que você deve sempre fazer isso. Todos os dias. Se não tem quem te pergunte como anda sua vida, como foi seu dia, escreva as respostas dessas perguntas para você mesmo e guarde as folhinhas, principalmente as dos dias excelentes. 
Espero que você olhe para suas respostas, seja lá onde for que elas estejam, e reflita sobre a importância das perguntas simples. Peço que dê mais valor à vida, aos dias, às pequenas coisas. Trate de fazer o que gosta e aproveitar o dia sempre alimentado com boas energias e vestido com sorrisos sinceros. Não viva empurrando com a barriga. Não faça nada obrigado. Não se deixe abalar pela falta de perguntas e mascaramento de respostas. Ame seu dia. Ame o mundo. Ame a vida e agradeça sempre. Claro que dias ruins virão e que você não vai conseguir sair esbanjando felicidade vinte e quatro horas por aí, mas para esses dias use sua folhinha com as respostas de um dia bom. Pensando bem, não importa quão ruim for seu dia, você sempre terá algo de bom para soltar como resposta e nem vai precisar da folhinha de outro dia, vai por mim. Não acredita? Pois bem, acordar todo santo dia, abrir os olhos e vê o colorido do universo não é uma coisa boa, uma resposta alegre e feliz para o “como foi seu dia?” ?

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

O fim do começo


A vida de Alex fluía por entre os dedos de Joana. Ela sentia o sangue quente de seu amante escorrer por seu braço. Aquilo lhe dava prazer. Ela se lambuzava com o líquido escarlate e por entre as pernas descia o prazer. Joana gargalhava e já estava tonta com o cheiro de vida ultrapassada. Mas ela queria satisfazer-se com tudo o que sobrara de Alex. Esperneou-se na poça de sangue, molhou a nuca e os cabelos. Por fim, bebeu aquele sangue todo. Para que o cadáver ficasse limpinho ela passou a língua por completo em todas as partes de Alex. Enfim ela havia conseguido, fora a última a se deitar com Alex. Ela se sentia extasiada por isso. Era o fim daquilo tudo.
O quarto estava abafado. Joana levantou-se e vestiu-se. Tirou a calcinha vermelha e socou-a goela abaixo em Alex. Delicadamente se virou para a cama e alisou a colcha vermelha eliminando os amassados. Ajoelhou-se na frente do corpo, sustentou-o em seus braços brancos e delicados e o colocou sobre a cama. Beijou a testa do morto, que já estava congelada, e saiu tranquilamente do quarto.
Enquanto descia a escada elegantemente, lembrava o quanto tinha sido feliz com Alex. Lembrou-se da primeira vez que tinha o visto há dois anos. Era um homem branco, alto, corpulento e viril. Quando o viu o sangue ferveu.  Seu útero pulou. Queria ser fertilizada, na verdade estava mais que na hora de ser fertilizada, já tinha trinta e oito anos.
O restaurante estava um pouco movimentado e ela tinha vindo acompanhar a irmã num encontro amoroso marcado por telefone. Ela não fazia ideia de quem era o homem por quem Lívia suspirava. Continuou olhando para Alex e para sua surpresa ele estava vindo em direção à mesa das duas. Ele chegou. Sorriu para Joana, mas foi beijar a mão de Lívia. Joana congelou. Seu útero agora se esvaia com tamanha decepção. O homem por quem ela havia se interessado era o amado de sua irmã. Ela tomou o restante de suco que tinha no copo e saiu deixando os dois a sós.
Terminou de descer a escada e sorria ao relembrar que a irmã fora traída antes mesmo de se casar com Alex. Na noite que antecedia o casamento de Lívia, Joana vestiu uma calcinha vermelha – a mesma que ela enfiou goela abaixo no corpo frio e sem vida – e um sutiã preto, acomodou em seu corpo um vestido que marcava suas curvas e foi até o endereço de Alex. Ao chegar lá não precisou ter muito trabalho, pois ele não cedeu, a satisfaz na hora; no chão e sem puder algum.
Dirigiu-se a cozinha para preparar um suco e enquanto terminava de lamber o sangue que tinha coalhado em seus lábios lembrava de como fora melhor ainda viver às escondidas com Alex depois que ele havia casado com a irmã. Como moravam na mesma casa, no momento em que Lívia não estava em casa ela aproveitava. Seu maior desejo era ser fertilizada por aquele homem – desejo que ela conservou até hoje. Mas ele não deixava, sempre se protegia. Ela se irritou com isso e cansou de ser objeto sexual secundário daquele nojento e resolveu matá-lo. Agora estava com a alma lavada. Contudo, antes de matá-lo o fez fecundá-la, agora ela era verdadeiramente mulher. Estava renovada. Seu útero fervia. Era como uma fábrica abandonada há anos que voltava a funcionar. As máquinas trabalhavam, as chaminés esquentavam e eliminavam fumaça purificadora por todo o íntimo escuro e gelado de Joana. Ela agora era quente. Era mulher. O calor subia, subia, subia. Ela queria gritar de prazer. Segurava o cabelo e mordia os lábios. Queria gritar. Queria mostrar para o mundo como era bom ser mulher.
Seguiu radiante até a geladeira. Mais calma, mas quente. Queria água para acabar de purificar aquele corpo velho. Queria que um novo íntimo surgisse. O líquido, cristalino fluído, deveria a percorrer por dentro e limpar. Era só o começo. A cabeça fervilhava em planos. Joana continuava velha, mas queria um novo âmago já que agora estava fertilizada. Abriu a geladeira e ao mesmo tempo em que segurou na porta do eletrodoméstico algo gelado entrou vagarosamente em suas costelas. Ele sentiu uma dor fina. Parecia não estar mais se renovando. Algo jorrava para fora dela, algo só dela. Sentiu novamente a dor, e mais uma vez, e mais uma vez, até que parecia estar toda se esvaindo. Tudo saia e ela não tinha mais controle. Algo estava errado, ela tinha certeza que não estava se renovando. Juntou todas as suas forças e conseguiu, depois de muito esforço, enxergar Lívia sorrindo atrás dela segurando firmemente uma enorme faca ensanguentada na mão. Tentou ficar de pé, mas sem sangue ela não era nada. Seu sangue jorrava, jorrava, jorrava. Lívia gargalhava. Enxergou um mar vermelho vivo. Era bem convidativo. A água brilhava e parecia ferver. Era um imenso concentrado de vida renovadamente selvagem. Resplandecia. Joana fechou os olhos e mergulhou no mar. Nunca mais voltou a superfície. 

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

A descoberta


Eles se conheceram na infância. Moravam próximos e brincavam juntos todas as tardes. Matilde era uma menina linda, adorava usar vestidinhos rosa e não saia de casa sem seu laço vermelho no cabelo. Joaquim, carinhosamente apelidado por Matilde de Joca, era muito sapeca, andava na rua e só tomava banho à noite. Cresceram juntos, choraram juntos, descobriram o mundo, suas bondades e maldades juntos.
Certo dia, já crescidos, com seus treze aninhos, confessaram algo enquanto brincavam:
– Eu quero falar uma coisa – disse Matilde.
– Há dias que quero falar uma coisa para você também – falou Joca.
– Pois diga logo – desatou Matilde.
– Não, quero escutar você primeiro – disparou Joca.
– Eu quero ouvir logo você! Me deixou curiosa – rebateu ela.
– Não quero falar logo! – disse ele quase irritado.
– Dá para parar com essa besteira e falar logo isso? Se você não falar, eu não falarei – gritou Matilde.
Joaquim ficou meio sem jeito, mas percebeu que não lhe restara alternativa a não ser falar logo para ela o que sentia. Disse timidamente:
– Matilde, conheço você há muito tempo, gosto muito de você. Só que de uns dias para cá gosto ainda mais de você. Não sei como te explicar, mas é um gostar diferente de quando gostava de você quando tínhamos nossos quatro anos. Gosto querendo te proteger. Gosto querendo te abraçar. Gosto querendo cuidar de você. Gosto guardando seu perfume. Gosto fazendo você sorrir. Gosto de ti mais que tudo.
Matilde corou e suas bochechas estavam da cor de seu laço. Sempre se mostrara menos tímida e mais resolvida que Joca, mas naquele momento não sabia o que fazer. Olhou nos olhos dele, colocou os cabelos atrás das orelhas, sorriu primeiro com os olhos, depois com a boca e falou:
– Estou sem palavras. Acredita que o que tinha para te falar era sobre isso? Também estou gostando diferente de você. Gosto de te ver sendo bobo. Gosto de tuas tentativas de me agradar. Gosto do teu jeito. Gosto do jeito que me olha.
Joaquim ficou vermelho, bem vermelho, quase escarlate, eu diria. Estava tão feliz que parecia ter ganhado asas. Era leve. O corpo não pesava. Não sentia a respiração. Ninguém mais existia a não ser eles dois. O mundo era alegre. Ele estava bobo. Voava, voava, até que...
– Você está bem, Joca? – perguntou Matilde.
– Oh, estou. Está tudo bem, tudo bem, tudo mesmo.
Joaquim recuperou o fôlego, continuou sorrindo e acrescentou:
– O que você acabou de falar é mesmo verdade?
Matilde sorriu e balançou a cabeça afirmativamente.
Joaquim retribuiu o sorriso, olhou nos olhos dela, aproximou sua face até que um pudesse sentir a respiração do outro, fechou os olhos e encostou os lábios nos dela. Ela aceitou os lábios dele prontamente. Trocaram um selinho. Aquilo foi indescritível para os dois.
Depois da descoberta e do selinho, os dois, felizes, muito felizes, se despediram e foram para casa, pois já era tarde. A noite já vinha chegando.
No dia seguinte brincaram novamente, beijaram-se novamente e gostaram-se novamente.
No ano seguinte brincarem novamente, beijaram-se novamente e gostaram-se novamente.
Nos seis anos seguintes cresceram mais, beijaram-se mais, descobriram-se mais e começaram a namorar sério com o consentimento da família.
Nos dezoitos anos seguintes amaram-se, casaram-se, tiveram dois filhos, um menino e uma menina, passaram por sérias dificuldades financeiras, perderam os pais, mas não deixaram de amar. O amor curou. O amor resolveu. O amor eternizou momentos, apaziguou ânimos, acalmou almas e solidificou a relação.
Nos dias de hoje vivem velhinhos, dividem a bengala e o mingau. Sentam-se na calçada e pacientemente veem a vida passar. Adoram mimar os netos e servem de exemplo para todos de que o amor é possível. Provam que por mais que o mundo gire, as mentalidades mudem, as atitudes tornem-se traiçoeiras, as pessoas tornem-se menos confiáveis, o amor ainda é a solução. Ele quebra e repara. Destrói e constrói. Envelhece e rejuvenesce. Finda e continua.

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Um feliz aniversário


Estava sentado naquela dura cadeira da recepção do hospital em um domingo angustiante aguardando notícias de meu amiguinho Gabriel, que se encontrava na U. T. I. De repente, uma ambulância chegou. Aquilo roubou temporariamente meu olhar e minha atenção. Dela saiu em uma maca uma linda menininha da mesma faixa etária que Gabriel. Loirinha e pálida deveria ter vindo de uma festa de aniversário direto para o hospital – um chapéu colorido em formato de cone e um vermelho nariz de palhaço pendurados em sua mão justificam minha hipótese. Atrás dos enfermeiros corria uma mulher desmanchando-se em lágrimas que não pôde ir para o centro cirúrgico e teve de ficar na recepção. Sentou-se ao meu lado e pôs-se a chorar. Olhei-a timidamente e ofereci um copo d’água. Ela aceitou e quando deu o último gole resolvi interagir:
– O que aconteceu? Aquela é sua filha?
– Sim, aquela é minha única filha. Era o aniversário dela... minha Isabela completava seus doze anos até que... até que... – respirou fundo e novamente seu rosto cobria-se de lágrimas – ela passou mal, muito mal.
– E ela já tem algum problema?
– Sim, ela tem insuficiência cardíaca. Ela já teve algumas crises, mas a de hoje nem se compara as outras. A de hoje foi muito forte mesmo! Os médicos já haviam me dito que a solução para o problema dela seria o transplante de um novo coração, mas é muito difícil. Ela é a primeira da fila para o caso de aparecer um transplante, mas eu não conto muito com isso. É muito difícil encontrar alguém que seja um doador no Brasil, um país repleto de seres humanos egoístas, mentirosos e hipócritas.
Concordei com sua fala e continuamos, pois, sentados ali. Rezando e sem receber nenhuma informação. Cabisbaixos, tentando alimentar os melhores pensamentos, mas assumo que estava difícil. Os ponteiros do relógio giravam e com eles meu estômago girava junto. Unhas? Eu não tinha mais.
Minha aflição diminuiu quando vi o médico caminhar em minha direção. A mãe de Gabriel, D. Zélia, que estava algumas cadeiras distantes de mim e mais aflita e desesperada, veio correndo. O médico chegou. Sua cara não era animadora.
– Vocês estão acompanhando o Gabriel?
– Sim! – respondemos uníssonos.
– Nós fizemos vários procedimentos, tentamos de tudo para reanimá-lo, mas infelizmente Gabriel teve morte cerebral.
O médico nem concluiu sua fala e D. Zélia caiu de joelhos gritando aos prantos. Pedia para que trouxessem seu filho de volta. Eu? Meu rosto se desmanchava em lágrimas e eu nem havia me dado conta. Tentava limpar e ser forte, mas a dor era grande demais. As lágrimas descontroladamente rolavam, mas tive de me conter para ouvir o que o médico ainda ia falar. Ele chamou a mãe de Isabela para junto de nós e disse:
– Seu filho se foi, D. Zélia, mas não fique triste, pois ele evitou que tivéssemos duas crianças mortas em uma única noite. Graças ao seu ato de tornar todos os membros de sua família doadores de órgãos, Gabriel salvou a vida de Isabela doando seu coraçãozinho para ela – nesse momento o médico apoiou a mão no ombro da mãe de Isabela e soltou um sorriso comportado.
D. Zélia recompôs-se e foi fortemente abraçada pela mulher que teve a filha salva por Gabriel. Limpando suas lágrimas ela disse:
– Eu posso apenas imaginar a dor que você deve estar sentindo, mas quero que saiba que eu e minha filha seremos eternamente gratas a você e ao seu filho. Ele, um desconhecido, que nem convidado para o aniversário dela fora, deu o melhor presente de todos: a vida.
D. Zélia confirmou com a cabeça e veio me abraçar. Nesse momento, já controlado e conformado, sussurrei ao seu ouvido: “não fique triste. Ele pode ter falecido, mas seu coração ainda pulsa, e com certeza, pulsará muito mais. Pulsará sonhos, alegrias, conquistas, enfim, uma nova vida.”
Ela concordou comigo, limpou as lágrimas e juntos sentamos, bebemos água e ficamos esperando para vermos como estava Isabela. Particularmente, estava doido para ver aquela face pura sorrir cheia de vida e trazer um pouco de alegria para a segunda-feira que se aproximava.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

A cura


Marta é uma mulher ímpar. Magra, alta, rancorosa, briguenta, adora uma confusão e um bom cigarro, principalmente após a janta. Passa a vida dedicando-se ao lar e ao marido. É uma excelente artesã. Crochê, tricô, costura. Sua principal característica é com certeza sua personalidade um tanto agressiva linguisticamente falando. Vive a falar palavrões e a dizer tudo o que pensa olho no olho.
Mora em um sobrado. Velho, grande, desgastado, rachado, sujo e desarrumado. A casa vive de reformas. Recentemente trocaram o telhado. Até que ficou bonitinho. Vermelho, bem vermelho! O piso está um horror! O pouco e ralo cimento que resistiu a ação do tempo desprega do solo e cria gigantescos buracos na sala de estar. A calçada está velha e desgastada assim como Marta. Quantas pessoas já pisaram ali? Quantas crianças já correram ali? Quantos gols já foram comemorados ali? Quantas fofocas já foram reveladas ali? Quantos bêbados já dormiram ali? – quando digo bêbados refiro-me ao marido de Marta que já bebeu, caiu e dormiu na calçada inúmeras vezes.
Marta gosta muito de futebol. Todos os domingos põe a velha e branca cadeira de plástico na calçada anciã, liga a televisão no máximo, pega uma bacia de pipoca, coloca algum líquido no copo e começa a gritar loucamente assistindo ao jogo de futebol. Grita, pula, xinga, mas não quebra a televisão, pois não vai ser fácil comprar uma nova.
Ela não tem muitas amigas. Para falar a verdade, pouquíssimas pessoas frequentam a sua casa. Sua única amiga e frequentadora assídua de sua casa é Fátima, uma mulher enigmática, de olhos dissimulados, cheia de problemas. As duas adoram conversar e pedir conselhos uma a outra. Quando Marta precisa viajar para o Rio de Janeiro ela é quem fica cuidando da casa e trazendo comida para o marido da amiga. Ela traz o almoço e a janta e está sempre presente na casa auxiliando o homem no que ele precisar. Doa-se ao marido de Marta, Deusinho, um curandeiro viciado em álcool, que adora branco e ama o final de semana, pois bebe até a madrugada. Durante a semana trabalha muito, seu terreiro é muito procurado. É corpo possuído, é inveja, é chifre, é maldição, é amor, é tudo! O local de trabalho do homem fica atrás do velho sobrado. É um terreiro cercado por altas e frondosas mangueiras, grande e de barro vermelho, um vermelho sangrento. Durante a noite acontecem as rodas. Gritos, gritos, gritos... palmas, cânticos, danças... oferendas, preto, sangue... Todos de branco, tudo a luz de velas.
Deusinho e Marta têm uma vida um pouco complicada. Vivem a brigar. Quando Deusinho bebe, ela nem espera ele acordar para a confusão começar. Palavras de baixo calão “voam”, chinelos voam, vasos voam e pratos também. A confusão só termina quando Deusinho vai para seu terreiro e finge não ouvir nada do que a mulher berra.
Marta sofre muito com o marido e sempre conta tudo para sua melhor amiga. Todavia, não busca a separação por medo de ficar sozinha e ninguém a querer mais, pois ela já está velha, 49 anos. Fátima sempre a ouve e aconselha mesmo com os inúmeros problemas que tem – foi devido a isso que conheceu Marta e Deusinho. Quando ela tinha brigado com o marido e parecia estar sofrendo uma maldição resolveu procurar um curandeiro o mais rápido possível para cuidar de sua vida. Assim, conheceu Deusinho e, diga se de passagem, adorou o que viu. A partir daí sempre que ela está com um problema, seja ele físico ou espiritual, ela procura Deusinho durante a noite – além de tratar dos espíritos ele também tem rezas e garrafadas para as dores que consomem a vivacidade dos seres humanos.
Em uma dessas noites escuras, libidinosas e neblinosas, Fátima mostrou sua real face. Tudo estava escuro e sombrio. Fátima estava como de costume possuída pelo desejo de possuir Deusinho. Como já era costume trocarem carícias durante a noite e nos períodos em que a amiga estava longe, ela usaria a desculpa de sempre – a insuportável dor que tinha em seu joelho, que a atrapalhava até para andar. Chegou viva, os olhos brilhavam, o cabelo de tão penteado seguia o ritmo do vento que o lambia, a pele hidratada e perfumada esperava ansiosamente pelo toque bruto e forte da mão calejada de Deusinho, a boca estupidamente vermelha e o vestido de tão apertado moldava uma falsa silhueta no corpo velho e gordo da mulher.
– Boa noite, amiga! Meu dia foi péssimo! Essa dor no meu joelho está cada vez pior, hoje estou movimentando muito pouco minha perna esquerda.
– Coitada! Sente que vou chamar Deusinho, ele vai rezar em seu joelho.
E assim saiu Marta, correu a procura de Deusinho. Achou-o se perfumando e trocando de roupa em seu terreiro.

– Fátima está na calçada esperando por ti para rezar naquele joelho doente dela.
– Mande ela entrar e diga que estarei esperando aqui no terreiro. Ah, não deixe ninguém aparecer aqui enquanto ela não sair, pois hoje tentarei incorporar um médico e tentarei curar de uma vez por todas o joelho de Fátima.
Marta saiu e foi dar o recado à amiga. Fátima, usando de todo o seu cinismo, pediu ajuda a Marta para chegar até o terreiro argumentando que a dor estava até impossibilitando-a de andar. Marta deixou os dois a sós e saiu, mas sem perceber deixou cair seu isqueiro quando voltava.
Assim que Marta saiu os dois começaram a se curar. Vorazmente Deusinho mordia Fátima e ela retribuía. O clima esquentou e os dois se curavam de prazer.
Marta acabara de jantar e como de costume tinha de fumar um cigarro. Aquele fumo envolvido por um pedaço de papel frágil acalmava-a. Pegou o cigarro, colocou a mão no primeiro bolso e não encontrou o isqueiro. Procurou em todos os outros e nada. Andou pela casa, conferiu no quarto, olhou na cozinha, mas nada encontrou. Lembrou-se então, que quando foi deixar a amiga no terreiro estava com o objeto no bolso. Como o vício é controlador ela não se conteve e foi buscar o objeto desrespeitando a ordem do marido. “– Eu vou bem caladinha para não atrapalhar e volto rapidinho.”
E ela foi.
Quando abriu a porta viu logo seu isqueiro brilhar. Agachou e pegou-o. Quando levantou a cabeça e já ia virar às costas dirigindo-se novamente à porta seus olhos ferveram. Ela viu o que nunca quisera ver. Deusinho satisfazia Fátima de um jeito que nunca satisfez Marta. A pobre mulher sentia-se um lixo, uma humana usada e acima de tudo traída. Não sabia o que fazer. Apenas saiu rapidamente e chorou até secarem as lágrimas. Sua raiva e espontaneidade de nada lhe valeram naquele momento. Ela ficou sem voz, sem ação e ficou com mais medo ainda de perder seu único e miserável marido, aquele que por mais que não a consumisse por completo deitava sempre com ela.
Chorou, mas optou por nada fazer. Aguardou os dois saírem, despediu-se da amiga e foi dormir junta a Deusinho. Dormiu e sonhou com o dia em que Deusinho iria encontrar a cura para o joelho da amiga – provavelmente, no dia em que ele enjoar de Fátima.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Lembranças



Escute enquanto lê:


Lembra de quando corríamos juntos de porta em porta? De quando assustávamos os vizinhos mais velhos? De quando nos escondíamos em nossa casinha da árvore? De quando você me olhava com um sorrisinho no canto da boca, apertava minha bochecha e eu retribuía acariciando seu cabelo vivamente brilhoso? Éramos duas crianças ímpares. Dois “pestinhas” como muitos diziam. Duas almas que se completavam. Doce e salgado. Frio e calor. Razão e emoção. Alegria e tristeza. Choro e sorriso.
Lembra do dia que doamos nossos brinquedos – o que sobrou deles?  Como crescemos do dia para a noite!
Lembra da minha primeira carteira? De seu primeiro salto? De quando você quase caiu na calçada tentando se equilibrar nele? Da penugem que era minha primeira barba? Da primeira vez que saímos sozinhos? De nossa primeira noitada? De nosso primeiro beijo, nosso primeiro “eu te amo”, nosso namoro? De nossa primeira vez? De nossas juras? De nosso noivado? Que dia incrível! O começo da materialização de um sentimento tão puro.
Lembra do dia mais importante de nossas vidas? De como eu estava nervoso e como você estava linda? De como eu segurava as lágrimas? De como você sorria e soltava as lágrimas? De nosso sonoro sim?
Lembra de nossa casa? De como você organizou tudo do seu jeitinho? De todo o trabalho que tive? Do sofá aconchegante no qual assistimos a diversos filmes? De nossas conquistas, nosso trabalho, nossas contas, nossa vida de adulto?
Lembra daquela tarde? Da notícia? De como eu era o homem mais feliz do mundo? De como eu mimei você durante os nove meses? De como foi lindo o nascimento dela? De como passamos noites acordados?
Lembra de como envelhecemos? De como nos preocupamos com o trabalho? De como pouco nos falávamos? De como nos cansamos de tudo? De como a rotina estava um inferno?
Lembra de nossa primeira briga? De como você chorou? Eu chorei escondido. Chorei muito. De como depois da primeira outras vieram e multiplicaram-se? Como esquecer, não é?
Lembra da mala, do último olhar, da buzina? Eu estava saindo. Foi difícil, mas foi o melhor.
Lembra? Você ainda lembra? Você ainda lembra de mim? Lembra de nós?

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Sobre saudade


Coisinha, estou com saudade de você. É como se um pedaço meu estivesse em um lugar distante. Estou com saudade de seu cabelo, de seu olhar, de seu sorriso, de sua pele, de seu jeito. Até de você mandando em mim, acredita? Queria te ter por perto. Queria poder te abraçar. Queria desabafar. Queria seus olhos para eu mergulhar bem fundo. Queria vê-los refletindo minha face. Queria uma alma para me escutar. Queria te tocar, falar com gesto o quão importante você é para mim. Essa saudade maltrata. Não sei qual o remédio, se é que tem. Talvez, o único remédio seja você, seja te encontrar. No entanto, enquanto não corro para te apertar, consolo-me com as palavras. Elas ajudam! Dizem o que uma boca tímida não ousa pronunciar. Transferem para o papel os tão escondidos e pusilânimes sentimentos de meu coração.

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

O toque

Ele saiu do ventre de sua mãe e ao contrário das outras crianças, que choravam ao seu redor, não enxergou as cores, as formas, a vida. Gemeu baixinho, encolheu o pequenino corpo e debateu-se na escuridão até sentir-se envolto por dois braços acolhedores. D. Esmeralda o colocou para dormir e guardou para si as preocupações e convicções que só o ser mãe é capaz de ter.
Passou sua infância na fazenda do avô convivendo com coloridíssimas borboletas, alegres pássaros e verdes pastagens que ele sabia que existiam, mas que seus olhos não eram capazes de enxergar. Passava a maior parte do tempo sozinho e recluso em seu mundo escuro. As outras crianças não o incluíam em suas brincadeiras, ao não ser na “cabra-cega”, na qual ele era sempre a cabra.
 Todavia, Cecílio não se chateava por não brincar com as outras crianças. O que ele adorava mesmo era sair sozinho e entrar na mata, esbarrar nas árvores, sentir o cheiro da vida, ouvir cantos de seres desconhecidos por sua visão. O que ele gostava mesmo era de se sentir livre. Liberto dos cuidados excessivos de todos que o rodeavam. Liberdade, ele só procurava isso. Desenvolveu-se em meio a essa liberdade.
O tempo seguiu seu curso indesviável e Cecílio tornou-se adolescente. Mudou de fisionomia e de endereço. Agora, mora com a mãe no Bairro das Flores Alegres. Ainda continua recluso, ainda mais eu diria. Não tem amigos e seu único passatempo é ir à pracinha para tentar sentir a liberdade que ele sentia na fazenda. Contudo, o máximo que consegue é uma suave brisa com um leve frescor perfumado de rosas tocando sua face. Por mais que tente cheirar a liberdade, aqui ele não corre, não esbarra nas árvores, não ouve cantos de seres desconhecidos.
Mas sentindo ou não o cheiro da liberdade, toda manhã ele está na pracinha. E foi em uma dessas manhãs que ele conheceu Cristina. O sol flutuava amarelo no céu azulado. As rosas desabrochavam lentamente e as flores observavam atentas aquele espetáculo. Algumas crianças brincavam no parquinho.
Cecílio sentou-se no banco como de costume, cruzou as pernas e ficou balançando a bengala desorientadamente. Alguns pombos o sobrevoaram na esperança de ganharem migalhas do pão que ele levava a boca.  Ele continuou a morder fortemente o pão quando percebeu que não estava sozinho naquele banco. Acomodou-se como quem marca território, mas não fez mais que isso. Alguns minutos depois, o vento soprou e algo como longos cabelos bateram em seu rosto. Nesse momento ele percebeu que sua companhia de banco era uma mulher. Ficou curioso para saber como ela era, mas guardou a curiosidade para si.
Minutos continuaram a passar e alguém resolveu quebrar aquele silêncio. Ela, sim, ela resolveu perguntar:
– Você vê o dia?
Ele desconsertadamente perguntou:
            – Você está falando comigo?
– Sim, estou perguntando a pessoa que eu sei que está nesse banco comigo.
– Infelizmente eu não posso lhe dizer, pois sou cego. Não vejo o dia e nem a noite.
– Eu também sou cega. Lhe perguntei pensando que você não era cego, pois é um costume que tenho. Em todos os locais que ando sempre pergunto a alguém como está o dia para que esse alguém possa me dizer e eu possa imaginar o que é real.
– E isso é bom?
– É sim! Me faz sentir presente no mundo. Não me sinto tão deslocada.
– Gostei disso. Acho que vou começar a fazer.
– Que tal irmos procurar alguém aqui na praça que possa nos dizer?
            – Gostei da ideia.
Os dois levantaram. Cada um com sua bengala. Dirigiram-se em busca de alguém. Até que... pararam uma senhora e perguntaram uníssonos:
– Você vê o dia?
A senhora respondeu:
– Sim!
Eles completaram:
– Nos diga como ele está.
Calmamente a senhora descreveu como estava o cenário que os rodeava. Terminada a descrição eles agradeceram à senhora e saíram. Cecílio sorria. Cristina perguntou:
– E aí? Gostou da experiência?
– Foi muito boa. Consegui imaginar como está o dia.
Cristina bateu a bengala em uma pedra e perguntou:
– Posso lhe contar um segredo?
Cecílio respondeu:
– Pode.
Ela prosseguiu:
– Eu pergunto as pessoas, imagino e guardo todos os dias bons como o de hoje em meu cérebro para que quando alguém me disser que o dia está ruim eu imaginá-los.
            Ele a questionou:
– Mas isso não é um grande segredo.
Ela acrescentou:
– É o segredo de minha felicidade.
– Então, já que funciona, a partir de hoje farei isso também. Olha, já estou contando meu mais novo segredo para você.
Cristina gargalhou e disse que tinha de ir. Ela já havia se afastado quando Cecílio gritou:
            – Ei, qual é seu nome?
– Cristina! E o seu?
– Cecílio!
Cecílio não ouviu mais nada além disso. Cristina se perdeu na escuridão e ele voltou para casa levando consigo o desejo de conhecê-la melhor. Ela havia despertado nele algo novo, melhor que a liberdade. Era como se ele enxergasse com o coração. Era uma sensação nova que ele não sabia o nome por nunca tê-la sentido.
No dia seguinte ele colocou seu perfume em demasia e esperançoso dirigiu-se à pracinha. Sentou no mesmo banco e quando uma criança passou perto dele ele disse:
– Ei, você vê o dia?
A criança um pouco assustada falou:
– Vejo.
O ceguinho continuou:
– Pois me diga como está.
A criança panoramicamente observou o ambiente e disparou:
– O sol hoje não está tão vivo. As nuvens estão esbranquiçadas. A grama está verdinha. As rosas... não têm tantas rosas. As flores estão alegres, mas poucas. A pracinha está um pouco menos movimentada.
Ao terminar a descrição a criança disse que precisava ir brincar e saiu correndo.
Cecílio agradeceu, mas a criança não estava mais ali para ouvir seu “Obrigado!”.
O ceguinho permaneceu sentado naquele banco esperando que alguém – Cristina – o fizesse companhia. Porém, esperou em vão, pois as horas passaram e ninguém apareceu. Saiu desapontado para casa.
No dia seguinte fez o mesmo ritual do dia anterior e foi à pracinha. Chegando, sentou no banquinho, mas com um semblante triste, pois já não estava tão esperançoso com a ideia de Cristina aparecer.
De repente, alguém sentou no banco. Seu sangue ferveu. Ele pedia confiante aos céus que ventasse para saber se era uma mulher. Mas nem foi preciso dar trabalho aos céus, pois uma voz idosa e cansada falou:
– Bom dia, filho. Vou sentar um pouquinho aqui para descansar, essas minhas compras estão muito pesadas.
Pigarreando ele não deu muita atenção à senhora. Estava frustrado.
A senhora saiu.
Demorou, mas quando ele menos esperava outra pessoa sentou no banco e fez a pergunta que mudou seu dia:
– Você vê o dia?
Cecílio profundamente feliz e desconsertado respondeu:
– Não vejo, eu sou Cecílio.
– Cecílio é você mesmo? Que bom! Sentamos juntos novamente.
– Que bom!
Cristina balançou a bengala e docemente perguntou:
– Posso lhe fazer um pedido?
– Pode sim!
– Posso tocar em você para que eu saiba como você é?
Um virou-se para o outro e Cristina começou. Suas mãos delicadas pousaram no rosto de Cecílio. Ela tocou seus olhos, sua sobrancelha, desceu seu nariz e parou por alguns segundos deslizando os dedos por seus lábios até que contornou sua face. Foi descendo as mãos e percorreu os braços dele. Parou. Cecílio, que nunca havia sido tocado daquela maneira, estava em êxtase. Seu sangue circulava rapidamente e o corava. Seu coração palpitava e algo que ele nunca havia sentido antes tomava conta de seu ser: o prazer. Essa nova sensação fazia-o homem. Ele havia descoberto o mundo. Ele agora experimentara a verdadeira liberdade. Agora sim sabia o que era isso. Ela o havia beijado com os dedos. Tudo havia se modificado. O toque. As sensações. O toque. O sangue corria. O toque. Seu corpo pegava fogo na escuridão. O toque. Seu corpo experimentava o prazer. O toque. Descobrira a vida. O toque. Tornou-se um homem liberto.
Ele ficou paralisado por alguns instantes para poder guardar aquele toque e o reconhecer em qualquer parte do mundo. Guardou-o. Cristina fazia o mesmo.
– Pronto! Já guardei suas feições! Disse Cristina.
Ele ainda não falava.
Passou alguns segundos e ela falou que tinha de ir embora porque já estava ficando tarde. Despediu-se de Cecílio tocando seu ombro e sumiu na escuridão.
Cecílio também resolveu ir para casa. Não tinha mais nada para fazer naquela praça. Caminhou feliz e já se preparava para amanhã.
O dia amanheceu. Ele se vestiu, se perfumou e foi à pracinha objetivando mais que nunca encontrá-la. Queria a conhecer melhor, embora já conhecesse seu melhor lado: seu toque.
Sentou-se no banco e ficou esperando. Esperou até ficar somente ele na pracinha. Ela não apareceu. Caminhou decepcionado para casa, mas com a esperança de amanhã ela aparecer.
A manhã chegou, ele fez todo seu ritual e novamente Cristina não apareceu. Ficou mais triste ainda, mas sempre alimentando a esperança de vê-la no dia seguinte. Vários dias seguintes se passaram e só o que aparecia era o toque dela em sua mente. A esperança de vê-la diminuía progressivamente. Ele sofria. Em tão pouco tempo, com poucos e pequenos encontros, Cristina havia se tornado a paixão de sua vida. Ela o fazia se sentir vivo no mundo escuro. Ela era como ele. Ele queria a conhecer melhor. Queria evoluir aquele toque. Queria beijá-la. Queria amá-la.
Anos se passaram, ele não frequentava mais a praça por conta de Cristina e vivia escuro por dentro. Nada mais o fazia sorrir. Nunca mais perguntara a alguém se via o dia. A solidão corroía seu âmago. A tristeza o cegava sentimentalmente enquanto a cegueira o cegava corporalmente. Tudo era escuro. Não tinha mais vida. Viver já não tinha mais graça. Não passava de um ser escurecido pelo destino. Mas um dia algo aconteceu e deu um basta nisso tudo.
Era quase finzinho de tarde. Cecílio tinha ido à farmácia comprar um comprimido. A rua estava movimentada. A barulheira era grande. As pessoas esbarravam-se. As sacolas de compras batiam em Cecílio. O espaço era pequeno para tanta gente. Buzinas. Buzinas. Reclamações. Brigas. O trânsito estava um inferno.
Cecílio andava devagar e estava um pouco desorientado com tanta movimentação. Sua bengalinha ia a sua frente abrindo caminho. Ele seguia rumo à farmácia quando... quando algo o paralisou. O fez perder a cabeça. Mudou seus sentidos, sua direção. Um toque. De repente, alguém havia tocado seu ombro. Era o mesmo toque. Ele o conhecia. Ele rodou, mas não havia ninguém. Chamou instintivamente por Cristina, mas ninguém respondeu. Saiu desesperado para qualquer direção. Não sabia mais para onde caminhava. Um baque. Carros buzinavam. Gente corria. Gritos. Olhares espantados e curiosos. Alguém sangrava no chão. O cheiro de vida se esvaindo era forte. O desespero tomava conta dos espectadores. Cecílio. O toque. Ele havia sido atropelado quando saiu desorientado andando na faixa de pedestre como semáforo verde. O sangue jorrava de sua boca. O toque. Sua bengala encontrava-se quebrada ao seu lado. Seu corpo endurecia vagarosamente. O toque. A vida deixava aquele corpo escuro. Cecílio morria. A vida ia-se por conta de um toque. Morria perturbado com a possibilidade de vê-la novamente. Vomitou o resto de sangue que ainda tinha em seu corpo e não enxergou mais nada como sempre fez em toda a sua vida.