A cura
Marta
é uma mulher ímpar. Magra, alta, rancorosa, briguenta, adora uma confusão e um bom
cigarro, principalmente após a janta. Passa a vida dedicando-se ao lar e ao
marido. É uma excelente artesã. Crochê, tricô, costura. Sua principal
característica é com certeza sua personalidade um tanto agressiva
linguisticamente falando. Vive a falar palavrões e a dizer tudo o que pensa
olho no olho.
Mora
em um sobrado. Velho, grande, desgastado, rachado, sujo e desarrumado. A casa
vive de reformas. Recentemente trocaram o telhado. Até que ficou bonitinho.
Vermelho, bem vermelho! O piso está um horror! O pouco e ralo cimento que
resistiu a ação do tempo desprega do solo e cria gigantescos buracos na sala de
estar. A calçada está velha e desgastada assim como Marta. Quantas pessoas já
pisaram ali? Quantas crianças já correram ali? Quantos gols já foram
comemorados ali? Quantas fofocas já foram reveladas ali? Quantos bêbados já
dormiram ali? – quando digo bêbados refiro-me ao marido de Marta que já bebeu,
caiu e dormiu na calçada inúmeras vezes.
Marta
gosta muito de futebol. Todos os domingos põe a velha e branca cadeira de
plástico na calçada anciã, liga a televisão no máximo, pega uma bacia de
pipoca, coloca algum líquido no copo e começa a gritar loucamente assistindo ao
jogo de futebol. Grita, pula, xinga, mas não quebra a televisão, pois não vai
ser fácil comprar uma nova.
Ela não tem muitas amigas. Para falar a verdade, pouquíssimas pessoas frequentam a sua casa. Sua única amiga e frequentadora assídua de sua casa é Fátima, uma mulher enigmática, de olhos dissimulados, cheia de problemas. As duas adoram conversar e pedir conselhos uma a outra. Quando Marta precisa viajar para o Rio de Janeiro ela é quem fica cuidando da casa e trazendo comida para o marido da amiga. Ela traz o almoço e a janta e está sempre presente na casa auxiliando o homem no que ele precisar. Doa-se ao marido de Marta, Deusinho, um curandeiro viciado em álcool, que adora branco e ama o final de semana, pois bebe até a madrugada. Durante a semana trabalha muito, seu terreiro é muito procurado. É corpo possuído, é inveja, é chifre, é maldição, é amor, é tudo! O local de trabalho do homem fica atrás do velho sobrado. É um terreiro cercado por altas e frondosas mangueiras, grande e de barro vermelho, um vermelho sangrento. Durante a noite acontecem as rodas. Gritos, gritos, gritos... palmas, cânticos, danças... oferendas, preto, sangue... Todos de branco, tudo a luz de velas.
Deusinho
e Marta têm uma vida um pouco complicada. Vivem a brigar. Quando Deusinho bebe,
ela nem espera ele acordar para a confusão começar. Palavras de baixo calão
“voam”, chinelos voam, vasos voam e pratos também. A confusão só termina quando
Deusinho vai para seu terreiro e finge não ouvir nada do que a mulher berra.
Marta
sofre muito com o marido e sempre conta tudo para sua melhor amiga. Todavia,
não busca a separação por medo de ficar sozinha e ninguém a querer mais, pois
ela já está velha, 49 anos. Fátima sempre a ouve e aconselha mesmo com os
inúmeros problemas que tem – foi devido a isso que conheceu Marta e Deusinho.
Quando ela tinha brigado com o marido e parecia estar sofrendo uma maldição
resolveu procurar um curandeiro o mais rápido possível para cuidar de sua vida.
Assim, conheceu Deusinho e, diga se de passagem, adorou o que viu. A partir daí
sempre que ela está com um problema, seja ele físico ou espiritual, ela procura
Deusinho durante a noite – além de tratar dos espíritos ele também tem rezas e
garrafadas para as dores que consomem a vivacidade dos seres humanos.
Em
uma dessas noites escuras, libidinosas e neblinosas, Fátima mostrou sua real
face. Tudo estava escuro e sombrio. Fátima estava como de costume possuída pelo
desejo de possuir Deusinho. Como já era costume trocarem carícias durante a
noite e nos períodos em que a amiga estava longe, ela usaria a desculpa de
sempre – a insuportável dor que tinha em seu joelho, que a atrapalhava até para
andar. Chegou viva, os olhos brilhavam, o cabelo de tão penteado seguia o ritmo
do vento que o lambia, a pele hidratada e perfumada esperava ansiosamente pelo
toque bruto e forte da mão calejada de Deusinho, a boca estupidamente vermelha
e o vestido de tão apertado moldava uma falsa silhueta no corpo velho e gordo
da mulher.
–
Boa noite, amiga! Meu dia foi péssimo! Essa dor no meu joelho está cada vez
pior, hoje estou movimentando muito pouco minha perna esquerda.
–
Coitada! Sente que vou chamar Deusinho, ele vai rezar em seu joelho.
E
assim saiu Marta, correu a procura de Deusinho. Achou-o se perfumando e
trocando de roupa em seu terreiro.
–
Fátima está na calçada esperando por ti para rezar naquele joelho doente dela.
–
Mande ela entrar e diga que estarei esperando aqui no terreiro. Ah, não deixe
ninguém aparecer aqui enquanto ela não sair, pois hoje tentarei incorporar um
médico e tentarei curar de uma vez por todas o joelho de Fátima.
Marta
saiu e foi dar o recado à amiga. Fátima, usando de todo o seu cinismo, pediu
ajuda a Marta para chegar até o terreiro argumentando que a dor estava até
impossibilitando-a de andar. Marta deixou os dois a sós e saiu, mas sem
perceber deixou cair seu isqueiro quando voltava.
Assim
que Marta saiu os dois começaram a se curar. Vorazmente Deusinho mordia Fátima
e ela retribuía. O clima esquentou e os dois se curavam de prazer.
Marta
acabara de jantar e como de costume tinha de fumar um cigarro. Aquele fumo
envolvido por um pedaço de papel frágil acalmava-a. Pegou o cigarro, colocou a
mão no primeiro bolso e não encontrou o isqueiro. Procurou em todos os outros e
nada. Andou pela casa, conferiu no quarto, olhou na cozinha, mas nada
encontrou. Lembrou-se então, que quando foi deixar a amiga no terreiro estava
com o objeto no bolso. Como o vício é controlador ela não se conteve e foi
buscar o objeto desrespeitando a ordem do marido. “– Eu vou bem caladinha para
não atrapalhar e volto rapidinho.”
E
ela foi.
Quando
abriu a porta viu logo seu isqueiro brilhar. Agachou e pegou-o. Quando levantou
a cabeça e já ia virar às costas dirigindo-se novamente à porta seus olhos
ferveram. Ela viu o que nunca quisera ver. Deusinho satisfazia Fátima de um
jeito que nunca satisfez Marta. A pobre mulher sentia-se um lixo, uma humana
usada e acima de tudo traída. Não sabia o que fazer. Apenas saiu rapidamente e
chorou até secarem as lágrimas. Sua raiva e espontaneidade de nada lhe valeram
naquele momento. Ela ficou sem voz, sem ação e ficou com mais medo ainda de
perder seu único e miserável marido, aquele que por mais que não a consumisse
por completo deitava sempre com ela.
Chorou,
mas optou por nada fazer. Aguardou os dois saírem, despediu-se da amiga e foi
dormir junta a Deusinho. Dormiu e sonhou com o dia em que Deusinho iria
encontrar a cura para o joelho da amiga – provavelmente, no dia em que ele
enjoar de Fátima.